Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo
Terça, 26 de Novembro de 2024

O que fica bem a uma mulher

17/05/2016

1. Aos 18 anos, eu achava que era pós-feminista. Trinta anos depois, sou feminista, mais a cada dia, e não será por acaso que ouço cada vez mais mulheres declararem-se feministas. Certamente não ficaram todas malucas, ou sem homem, ou contra os homens, como os machistas, homens ou mulheres, gostam de acreditar. Falo em machistas homens ou mulheres porque há mulheres machistas, tal como há homens feministas. Machista é qualquer espécie de abuso ou coacção sobre as mulheres, perpetuando a imposição de um modelo.

2. Claro que hoje, na maior parte das democracias, muito mais mulheres ocupam espaços antes dominados por homens, e nos últimos 30 anos deram-se outros avanços decisivos, incluindo os jurídicos. O machismo tem objectivamente menos margem de manobra, pode com mais frequência ser punido em tribunal. Mas creio que se há 30 anos eu me via pós-feminista era por acreditar que os machistas estavam em extinção, evolução natural, questão de tempo. E se agora me vejo cada vez mais feminista é por verificar que, mesmo com tudo o que se fez e sabe, malgrado o que já deveria ter sido culturalmente absorvido, em países em que as condições legais para isso supostamente existem, em suma, apesar de todas as oportunidades que os machistas tiveram para deixar de o ser, o machismo soma e segue, reciclado consoante o estilo, o tempo, o lugar, desde a piadinha à violência extrema. Para ficarmos pela piadinha, a aprovação da lei contra o assédio parece ter tido pouco efeito nos grunhidos da minha zona histórica de Lisboa, então de cada vez que dobro a esquina (eu ou qualquer ser aparentemente do sexo feminino), tenho pensamentos ruins sobre o futuro daqueles proto-stalkers. E o que desejo aos piadistas que julgam ter feito humor com a lei dos piropos é que sejam assediados por um tiranossauro de dimensões extrapriápicas, todos os dias, sempre que saírem de casa, para que possam experimentar quotidianamente aquilo que, de facto, não gostariam que acontecesse às filhas, às mulheres, às irmãs, às mães. Portanto, de algum modo, o clima é mais agreste do que há 30 anos: se a cabeça ainda não abriu, vai abrir quando?

3. Os exércitos de inimputáveis gerados pelas novas possibilidades virtuais alimentam este clima agreste, em que cada vez mais mulheres sentem a necessidade de um feminismo activo. Por um lado, a fasquia subiu, ou seja, mais mulheres não têm pachorra para levar caladas com o que antes passava ao largo. Por outro lado, sabemos muito mais do que se passa, e não se passa, nas cabeças, porque elas estão escancaradas nas redes sociais e nas caixas de comentários, muitas vezes a salvo de um frente-a-frente, ou a coberto de anonimato. É possível que o aumento dos números de violência doméstica (cujo alvo, na esmagadora maioria dos casos, são mulheres) reflicta um aumento de denúncias, e portanto maior fortalecimento das mulheres. Em resumo, parte do que parece pior será apenas porque veio ao de cima, não porque não estivesse lá. Mas vir ao de cima é uma razão mais para lutar, está identificado.

4. E o embate dá-se logo aí. Mulheres demasiado activas, demasiadocombativas, demasiado lutadoras: nada disso fica bem a uma mulher, do ponto de vista machista. Aliás, em geral, numa mulher, muito é sempredemasiado. Uma mulher que fale de forma clara, tenha opiniões, se posicione ou lute é facilmente demasiado assertiva, quando não histérica, esganiçada, radical, maluca. Já um homem de convicções, como sabemos, será positivamente assertivo, corajoso quando combate, e se explode ninguém o dirá neurótico. Milhares de anos de sonsice desaguam aqui, frescos e prontos para mais um milénio. Depois de tudo o que sabemos, o próprio da mulher, para o bem e para o mal, é ser sonsa, ambígua, dissimulada, manobrar pela sombra, levar o seu homem com jeitinho, levar a água ao seu moinho sem muito barulho, como as mulheres sempre fizeram, segundo a história gravitacional dos homens. Nessa versão, mulher sempre foi cabra e anjo, puta e mãe, num slalon de esperteza e artimanha, esforço em silêncio, dor muda. A eles, o mundo, a força, a clareza, a guerra. A elas, artes de não se fazerem notar demasiado, além do que se espera delas.